Dias de seca e calor na cidade. Como meu horário de treino no Arnis Kali é noturno, o calor se torna muito menos incomodo, mas aquela era uma noite excepcionalmente quente. Ainda assim, não era nada que inviabilizasse o treino, mas o Mestre Dada tinha algo diferente em mente.
Tranquilo e sorridente como usual ele disse que devido ao calor treinaríamos fora da academia. Do aquecimento até a aula em si seria tudo feito sob as estrelas, no espaço que existe na entrada da academia. O que também incluía chão irregular, pouca iluminação e cia. Assim, antes do aquecimento, ele reiterou que naquela noite teríamos um treinamento no ambiente “real” e não o “ideal” que temos dentro da academia, abandonando todo aquele chão liso, macio, o espaço de aprendizagem e seus recursos que já comentei anteriormente. Era preciso se tornar mais consciente do ambiente, de onde se podia pisar e como se posicionar.
Já no aquecimento, a prosaica corrida foi algo diferente. Fizemos um circuito maior e para lá de irregular, haviam escadas, rachaduras, pilastras, jardim, subidas e descidas. Na sequência de treinamento com bastões devo ter acertado a parede algumas vezes, mas fomos todos nos adaptando. O exercício que fizemos foi um tradicional Sangga at Patama, de defesa e ataque, em grupo. Geralmente um fica no meio como alvo, evitando os ataques dos outros e contra-atacando. Um exercício que já havíamos feito diversas vezes.
Mas a diferença naquela noite era justamente o ambiente. Como o espaço era maior e variado começamos a nos movimentar de forma que simplesmente nunca havíamos pensado em fazer dentro do ambiente controlado da academia. Primeiro eu comecei a girar em torno do alvo, para que o ataque viesse justamente de um ponto que ele não estava esperando. O que torna a defesa mais tensa, mas também deixa o exercício como um todo mais interessante. Logo percebi que aparar o golpe de um bastão preto fosco no meio da noite e na rua é muito mais difícil que no ambiente iluminado de sempre. Bastava uma leve finta para esse golpe de sempre se tornar imprevisível.
Outro colega passou a usar a quantidade de adversários em seu favor quando era o “alvo”, se movimentando para colocar um inimigo no caminho dos outros. Algo que eu já havia aprendido nos meus saudosos tempos de Kung Fu com o Valmir. Até mesmo uma pilastra ou qualquer outro elemento do terreno não era apenas parte do cenário, mas algo que poderia ser utilizado como obstáculo para o inimigo ou proteção para o contra ataque. Nossa atuação estava se moldando ao espaço como a àgua se molda a forma de seu recipiente.
Nessa noite estávamos mais conscientes do espaço. Além de atacar e defender também estávamos tentando usar o espaço à nosso favor o que disparou nossa consciência do ambiente e ativou nossa criatividade. Ao mesmo tempo estávamos criando variações dentro de um exercício que todos já havíamos feito diversas vezes e tudo isso resultante de uma simples mudança de ambiente. E pela tranquilidade do Mestre, creio que era exatamente o que ele tinha em mente. Frequentemente a criatividade demanda observar algo que vemos no cotidiano sob um perspectiva diferente. Forçar o aluno à essa nova perspectiva é uma das técnicas mais práticas para disparar a criatividade dos alunos e creio que foi exatamente isso que aconteceu.
Tal exemplo me reforça a idéia de que o professor deve ter uma atitude parecida com a do empreendedor. Se o empreendedor busca sempre novas formas de fazer negócio e ter lucro o verdadeiro professor deve ter uma atitude semelhante, sempre procurando oportunidades para oferecer novos aprendizados para seus alunos. Assim, uma noite quente se tornou muito mais do que isso, virou um oportunidade de aprendizagem bem-aproveitada.
Extraído de Arte Filipina.
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